segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Considerações literárias

The delight of opening a new pursuit, or a new course of reading, imparts the vivacity and novelty of youth even to old age.

- Benjamin Disraeli

Perguntas Inteligentes

- Desculpe, tem algum livro de Sophie Calle?
- Não, de momento não temos nada.
- Ah... E isso é na loja toda ou só neste computador?

O dia antes da felicidade




O dia antes da felicidade
Erri de Luca
Bertrand Editora
ISBN 9789722520003



Sinopse
A história de uma criança nascida em Nápoles durante a Segunda Guerra Mundial. Órfã, é adoptada e o livro segue o seu crescimento, a sua visão da guerra, do sofrimento humano mas também do amor e da possibilidade de alcançar a paz e a felicidade.


Excertos da obra:

«Retomei o meu lugar à baliza. Deixavam-me jogar com eles porque ia buscar a bola aonde quer que ela fosse parar. Destino habitual era a varanda do primeiro andar, uma casa abandonada. O rumor era o de que morava lá um fantasma. Os prédios velhos tinham alçapões tapados, passagens secretas, delitos e amores. Os prédios velhos eram ninhos de fantasmas.»

«Percebi que o meu medo era tímido, para se mostrar precisava de estar sozinho. Ali, ao invés, havia os olhos das crianças em baixo e os dela em cima. O meu medo envergonhava-se de sair. Vingar-se-ia depois na cama, à noite, no escuro, com o rumorejar dos fantasmas do vazio.»


A história deste livro (contada com uma mágoa doce como a dos contos infantis, como as fábulas) é contada pela voz de um jovem orfão (começa quando ele tem 6 anos e continua durante a sua juventude) mas não é a sua história... É a história de uma época negra do passado recente (Segunda Guerra Mundial), a história de uma luta silenciosa e a história de uma cidade italiana, Nápoles, e da forma determinada com que sobreviveu à escuridão.

Ao descobrir um quarto escondido ao procurar pela bola com que tanto ansiava jogar com os rapazes mais crescidos (de 9 anos), o narrador está longe de saber a dor, o medo e a ânsia de liberdade que esse quarto já presenciara. É através de D. Gaetano, vizinho, professor, orfão (como ele prórpio) e contador de histórias que o jovem vem a descobrir o negrume que a sua cidade viveu durante o ano do seu nascimento, 1943. Naquele quarto Gaetano, correndo riscos mas querendo fazer algo de bom para se recordar a si próprio que a bondade ainda é uma característica do ser humano, deu guarita e ajudou a esconder um judeu durante a guerra.

O dia antes da liberdade que nos fala o livro não é o dia antes dos primeiros pontapés na bola de um jovem rapaz... É o dia antes da libertação de todos os judeus que tiveram de esconder e de, certa forma, se anular enquanto indivíduos.


Nota 3

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Valha-me Deus!!!

Por vezes é ingrato o papel do comerciante. E se falamos de livreiros...

A rapariga aproximou-se de mim... Muito fashion, magra (como ditam as regras) e com aquele ar de quem se julga o centro do mundo.

- Olhe, queria um livro mas não sei o autor... É um tal de "Maias", conhece?
- Boa tarde! Sim, conheço! Pretende a edição dos Livros do Brasil?
- Daaah, o autor é português!

Ok...

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Ácido sulfúrico




Ácido sulfúrico
Amélie Nothomb
Edições Asa
EAN 9789724150864
ISBN 978-972-41-5086-4



Nesta altura do ano, ao trabalhar numa livraria, o trabalho e o cansaço são muitos e o tempo e disposição de leitura poucos. No entanto, ao arrumar os livros um dia, no trabalho, este sobressaiu por entre os outros. Primeiro porque já algum tempo esta autora me suscitava alguma curiosidade, segundo porque, por ser um livro pequeno, poderia (achava eu) lê-lo rapidamente... Claro que não contava em adormecer ao fim de cada parágrafo!

Num livro que é, simultaneamente, uma crítica a um dos períodos mais negros da história e da sociedade actual, Amelie Nothomb cria um ambiente extremo num reality show, "Concentração", onde os participantes se dividem em dois grupos dos quais um está destinado a perder tudo. Passado num ambiente em tudo similar aos campos de concentração nazis, encontramos, de um lado, os kapo, os participantes que se propuseram ao concurso, pessoas maioritariamente estúpidas, incultas e sedentas de fama o suficiente para acatarem ordens sem as questionarem. Do outro lado encontramos os prisioneiros, pessoas "sequestradas" das ruas contra a sua vontade, e a quem nada mais resta senão aguardar um milagre que lhes devolva a liberdade. Todos os dias os prisioneiros escolhidos pela organização do programa são chamados durante a apresentação matinal e encontram o seu fim (do programa e da vida).

No meio da podridão humana e social que é "Concentração", Zdena, uma das kapo mais crueis, que é, como podemos ler na sinopse, "uma mulher desempregada que espera aproveitar o seu posto de kapo para desencadear a sua vingança sobre a sociedade", vai encontrar o seu objecto de desejo. CKZ 114. A jovem, tal como todos os outros prisioneiros, fora desde o início privada da sua individualidade e reconhecida como "uma coisa" à qual fora atribuída uma matrícula, à semelhança dos judeus durante a Segunda Grande Guerra, talvez na vã esperança de impedir uma empatia entre o público e os detidos. Zdena vive obcecada com a jovem e deseja, mais que nada, atribuir um nome ao rosto que a atormenta. Mas CKZ 114, ou Pannonique (pois é esse o seu nome) não quer ceder ao pedido da guarda receando perder, assim, o que ainda considera um direito seu, algo pessoal que a relembra que, acima de tudo, é humana. Quando nos roubam a identidade nada é mais sagrado que o nosso nome. Quando nos sentimos atraídos por algo ou alguém nada tem mais valor que poder dar um nome ao objecto do nosso desejo.

É a partir desta premissa que se desenrola o livro. Um jogo de desejos antagónicos que se medem e gladiam durante uma luta de interesses.


Nota 4

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Sua Majestade...





"A Leitora Real"
Alan Bennett
Edições Asa
EAN 9789892306490
ISBN 978-989-23-0649-0



Excerto:

"A culpa foi dos cães. Eram snobs e, depois de terem estado no jardim, seria normal que subissem os degraus da entrada, onde geralmente um criado lhes abria a porta. Contudo, hoje, por alguma razão, correram pelo terraço a ladrar desalmadamente, voltaram a lançar-se escada abaixo e a contornar a casa, onde ela os ouviu ganir para qualquer coisa num dos pátios.
Era a biblioteca itinerante da cidade de Westminster: uma grande carrinha semelhante às das mudanças, estacionada lá fora ao pé dos contentores, junto a uma das portas da cozinha. Era uma parte do palácio que ela não via muito e certamente nunca lá vira a biblioteca. Tal como os cães, provavelmente, e daí o barulho; assim, falhada a tentativa de os acalmar, subiu os pequenos degraus da carrinha para pedir desculpa."

E é assim, em dois pequenos parágrafos, que o autor nos dá o mote para o pequeno livro que temos em mãos: a descoberta do mundo literário pela Rainha da Inglaterra, aos oitenta anos da soberana.

Alan Bennett, nascido à 75 anos em Leeds, é notoriamente conhecido como humorista, actor e autor, e tem, no sentido de humor e na sátira, a sua marca pessoal. Este livro, que na versão original tem o título "The Common Reader", um título cujo jogo de palavras é muito melhor conseguido que na tradução portuguesa, é uma ironia em torno da realeza britânica, dos governos políticos e dos "perigos" dos conhecimentos literários.

Isabel II, soberana à algumas décadas, nunca foi particularmente conhecedora ou apreciadora de literatura. Para ela os livros eram, pura e simplesmente, uma perda de tempo. No entanto, e naquele dia, ao entrar na carrinha da biblioteca itinerária, com o único intuito de pedir desculpas, e ao encontrar-se frente a frente não só com o bibliotecário mas também com Norman, o ajudante de cozinha, acaba por, devido ao seu próprio constrangimento, requisitar um livro. A escolha (feita pelo processo "conheço pessoalmente este autor, não conheço pessoalmente este" deixa-a desiludida... A promessa literária não se ergue à altura das expectativas reais. No entanto, ao ir entregar o livro (com todas as intenções de não repetir a façanha) acaba por se ver guiada por Norman por um labirinto de livros e autores os quais nem sabia existir.

O livro, light e despretencioso lê-se facilmente... Nesta época, em que o tempo e a vontade por vezes parecem nem existir, soube-me bem poder pegar num livro leve e irónico, que me entretia enquanto me abria o apetite para outros livros e outros autores. É, obviamente, uma ficção irreal (e o final não deixa quaisquer dúvidas sobre isso), mas as descrições, principalmente, dos interiores do Palácio de Buckinham quase nos fazem acreditar que as coisas podiam ser assim.

Recomendo a quem, como eu, anda apertado de tempo mas continua a valorizar os poucos momentos à noite em que, antes de adormecer em cima do livro aberto (por vezes quase babando as folhas, admito!) pode fechar a porta do quarto e, egoisticamente, dedicar-se ao prazer da leitura.


Nota 3