quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

História de Amor dos Tempos Modernos

Há cerca de duas décadas cheguei a um encontro de amigos, à noite, num café, apenas para encontrar um dos ditos em extremo entusiasmo. Contou-me que, quando se preparava para sair e vir ao nosso encontro, ligou a televisão na RTP2 para ser saudado pela actriz Ana Brito e Cunha que, de forma simpática, o elucidou sobre o facto de ser um Idiota. Enquanto a música cuspia decibéis à nossa volta, ele falava-me do poema que desconhecia e que ouvira só parcialmente.

- Assim que liguei a televisão e me preparava para sentar no sofá, ela disse “Sente-se… Está sentado? Você é um Idiota!”. Foi tão estranho… Mas como liguei a televisão no momento em que estava a começar a declamar, nem sei de quem é…
- É do Bertold Brecht. – respondi.
- Tu conheces?
- Sim… Tenho o livro de poesia do Brecht… Vou ver se te trago.

Nessa noite acho que nos (re)descobrimos. Ele olhava-me com a admiração de me descobrir conhecedora de Bertold Brecht. Eu, surpreendida com este rapaz que desistira da escola para arranjar carros, mas que se deixava arrebatar pela poesia. No encontro seguinte levei-lhe uma fotocópia do poema. Continuámos a mútua (re)decoberta. Meses depois concluímos que havia mais que uma amizade. Faz hoje 19 anos que partilhamos poesia. E, recentemente, ele voltou a surpreender-me… Foi aos seus papéis e veio mostrar-me um em especial… Dobrado, com vincos de 20 anos, estava a fotocópia que lhe dera.

"Sente-se.
Está sentado?
Encoste-se tranquilamente na cadeira.
Deve sentir-se bem instalado e descontraído.
Pode fumar.
É importante que me escute com muita atenção.
Ouve-me bem?
Tenho algo a dizer-lhe que vai interessá-lo.

Você é um idiota.

Está realmente a escutar-me?

Não há pois dúvida alguma de que me ouve com clareza e distinção?
Então Repito: você é um idiota. Um idiota.
I como Isabel;
D como Dinis;
outro I como Irene;
O como Orlando;
T como Teodoro;
A como Ana.
Idiota.

Por favor não me interrompa.
Não deve interromper-me.
Você é um idiota.
Não diga nada.
Não venha com evasivas.
Você é um idiota.
Ponto final.

Aliás não sou o único a dizê-lo.
A senhora sua mãe já o diz há muito tempo.
Você é um idiota.
Pergunte pois aos seus parentes.
Se você não é um idiota...
claro, a você não lho dirão, porque você se tornaria vingativo como todos os idiotas.
Mas os que o rodeiam já há muitos dias e anos sabem que você é um idiota.
É típico que você o negue.
Isso mesmo: é típico que o Idiota negue que o é.
Oh, como se torna difícil convencer um idiota de que é um Idiota.
É francamente fatigante.
Como vê, preciso de dizer mais uma vez que você é um Idiota e no entanto não é
desinteressante para você saber o que você é e no entanto é uma desvantagem para você
não saber o que toda a gente sabe.
Ah sim, acha você que tem exactamente as mesmas ideias do seu parceiro.
Mas também ele é um idiota.
Faça favor, não se console a dizer que há outros Idiotas:
Você é um Idiota.
De resto isso não é grave.
É assim que você consegue chegar aos 80 anos.
Em matéria de negócios é mesmo uma vantagem.
E então na política!
Não há dinheiro que o pague.
Na qualidade de Idiota você não precisa de se preocupar com mais nada.
E você é Idiota

(Formidável, não acha?)"


por Bertolt Brecht






Sem comentários:

Enviar um comentário